Crónica de Jorge C Ferreira | Cores

Crónica de Jorge C Ferreira

Cores

Coloridas são as ideias que trazes na cabeça. Um caleidoscópio e um binóculo de ver amores. As meias berrantes que usavas. O cabelo de corte arrojado e uma cor que chamava olhos. Eram, no entanto, a variedade e a forma como os teus pensamentos nasciam que importavam e chamavam à atenção.

O lápis. A mão ágil. O desenho a sair como se voasse. Um sortilégio. Uma quase magia. As mãos magras, delgadas, as unhas “arranjadas” e pintadas com a tinta da paleta. Os tubos dos guaches, dos acrílicos, dos óleos. Uma bata pintalgada. Uma bata que podia ser uma obra de arte. A arte de ser o pesquisador de uma cor por inventar.

A tela virgem que queima os olhos. Quantas lágrimas diante de tal cenário. A raiva da inexistência da ideia. A tela que só tem esguichos e manchas de sangue de um pintor que se tentou suicidar. A impotência perante o branco. A necessidade da cor. A necessidade da vida. A necessidade de romper o vazio.

Desvirginar o corpo do poema com uma pintura que o cobre de encómios. O prazer de um luxo duplo. As palavras cobertas por uma pintura de luxúria. Meia romã de sementes e polpa vermelhas a espreitar sobre uma mesa de amar. Uma provocação este fruto. Um fascínio deglutir tal iguaria. Um fruto que chama a outras carícias nas mãos de quem pinta, de quem escreve, de quem ama.

Quantas horas dura a luta com uma pintura em progresso. Há quem diga que nunca nada está acabado. Tudo é possível de melhorar. Qualquer obra está inacabada. Quantos quilos pesam, muitas vezes, os pincéis? Quantas pinturas nos gritam o sofrimento do pintor? Uma pintura dorida, cansada. As pesadas cores. Os cativos sentires numa simples pincelada. Parece que a mão do pintor está colada à tela.

O arco-íris, esse meteoro luminoso que, de vez em quando, rasga o céu. Esse mirabolante acontecimento que nos alegra a vida. Procurar o fim desse colorido. Fazer uma bandeira e assumir uma identidade. Saber da sorte que é assistir ao fenómeno em todo o seu esplendor. Tanto mundo iluminado!

Os modelos e o nu. A pose. O realçar dos músculos. A beleza do corpo. A beleza que muda com os tempos. Arquétipos que variam consoante os ditames dos senhores que se ocupam da moda da beleza. A magreza infinita e as suculentas barrigas. As cores da pele e dos cabelos. A depilação desenhada. Como as coisas mudam!

Está custoso de acabar este quadro. O pintor está a ficar cansado. Há uma aguarela na parede que alivia o cansaço. A tela continua no cavalete. Cheira a tintas e a suor. Cheira a arte suada. De repente uma nova energia. A paleta a chamar a atenção do pintor. Um rasgo saído do mais profundo sentir e o traço final. Depois é só assinar e esperar que a fúria arrefeça. Vamos ver se a coisa fica assim.

«Bonito quadro, sim senhor! Tanta coisa para tão pouco.»

Fala de Isaurinda.

«Tão pouco não, há uma obra acabada!»

Respondo.

«Nunca se sabe, pensa nisso.»

De novo Isaurinda e vai, com gestos coloridos nas mãos.

Jorge C Ferreira Dezembro/2019(229)

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Jorge C Ferreira.


 

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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Cores”

  1. Eulália Pereira Coutinho

    Texto magnífico. A inspiração do artista. Tela vazia. Transformar a tela numa obra de arte.
    A dúvida. Obra acabada.
    A arte é inexplicável. É sublime.
    Obrigada pelas cores da sua escrita. É única.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eúlália. A obra sempre incompleta. As luzes e as cores. Abraço

  2. António Feliciano Pereira

    Um quadro acabado com êxito; o pintor conseguiu transmitir, quiçá, uma mensagem de recurso e saiu-se bem.
    Andará ele à procura da inspiração que tinha só de olhar para dentro de si?
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. O pintor embrulhado nas cores que cobrem a tela. A vida da arte. Abraço

  3. Cecília Vicente

    Cada um interpreta e visualiza a arte,quer a cores,quer no branco e preto. Nestas palavras de múltiplas cores vejo todas as cores de um arco íris,um quando permanentemente a ser pintado pelas tais mãos ágeis e magras que ousam pintar esse quadro que talvez só eu interprete tal qual a minha imaginação se deixa levar…
    Abraço meu amigo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigada Cecília. Toda a arte está no nosso olhar. Todos temos uma diferente maneira de ver. Abraço.

  4. Regina Conde

    A percepção das emoções e transformações ao longo da vida. O artista tem a capacidade de criar beleza através da sensibilidade e inspiração. As cores que utiliza são a imitação da realidade. É a Arte das palavras coloridas que faz deste texto dos melhores que já escreveste. Este está acabado. Outros iniciados. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Vamos ver o que conseguimos criar. Trabalhar a cor das palavras. Colorir a nossa mente. Abraço

  5. Madalena Pereira

    As dores do artista…! No entanto, há uma obra acabada que lhe dá a sensação de que valeu a pena o sofrimento. Ela ali está! Orgulhosa! Testemunha silenciosa para a posteridade. A assinatura levantará a curiosidade: Quem era o autor? Que vida faria? Bebia? Fumava? Era boémio? Tinha mau feitio? Que sejam abençoados todos os que pelos seus dedos criam obras primas intemporais, alimento de tantas almas! Bravo, meu amigo, arrasou! Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Sofrer por antecedência. Nunca dar nada por adquirido o julgamento não cabe ao artista. Abraço

  6. Cristina Ferreira

    Bem aventurados os que têm o Dom de “ver” as cores que brilham por dentro. Alcançar o que está para além do arco íris. E bem aventurados os que têm a arte de pesquisar uma cor por inventar.
    Uma bela e inquietante crónica onde a tua poética e sedutora escrita nos prende, nos fascina, e nos consegue transformar em personagens desta tela que é a vida e a necessidade de viver e tantas vezes esta fúria de “romper o vazio” . Uma vez mais uma delicada e intensa a este fruto e seu significado. A româ. A vida.
    Tanta beleza, tanta arte, tanta cor nestas tuas palavras.
    Hoje, e ao contrário das outras vezes, não sei se terei entendido bem a Isaurinda (esta nossa vontade de entender os sábios) . Por vezes olhamos e não conseguimos sentir o que está para lá do que vemos. Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. O interior das cores. As massas disformes e coloridas. A vontade de ser cor. Abraço.

  7. Teles Ivone Teles

    Um texto em que as palavras se ocupam de cores. Acredito que as palavras também são coloridas. As tuas, neste texto, não falam só de cores. Falam de quem usa as cores para, com elas, criar Arte. E se não houver imagens coloridas, basta um lápis que desenhe o que se escondeu na mente do artista. Quando o/a artista sente que está vazio, quanto sofrimento sente. Há uma necessidade de ” dar ao mundo ” as impressões que tem em si prontas para a tela, ou qualquer outra superfície que as aceite. Estar à beira da tela e não conseguir pintar é como o escritor que olha o papel e sentiu fugir-lhe o que, dentro de si, queria acordar.
    Gostei da crónica para mim inesperada. Vou com a Isaurinda espreitar o que já está, tão pouco, para acabar a pintura. A tela, espera. Beijo Amigo/ Irmão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Sim, minha amiga, as palavras têm cores. Vestem roupagens diferentes conforme as frases. São dias e noites. Belo o teu comentário. Abraço

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